Geral

Um país envenenado

- Claudia Bittencourt



O Instituto Nacional do Câncer (Inca) fez ontem o mais duro ataque de um órgão do governo federal ao uso de agrotóxicos no país. O instituto recomendou a redução "progressiva e sustentada" do emprego dos venenos nas lavouras, como maneira de diminuir o número de casos de câncer. Os pesticidas, de acordo com o instituto, contaminam "todas as fontes de recursos vitais, incluindo alimentos, solos, águas, leite materno e ar". O instituto alerta que o "intensivo uso desses produtos provoca grandes malefícios, como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população em geral". Segundo o órgão, as intoxicações agudas, que afetam principalmente os trabalhadores na agricultura, podem causar irritação da pele e olhos, coceira, cólicas, vômitos, diarreias, espasmos, dificuldades respiratórias, convulsões e até a morte.

Leia o documento técnico Posicionamento público do INCA a respeito do uso de agrotóxicos.

As intoxicações crônicas, que podem afetar toda a população, pela presença de resíduos de agrotóxicos em alimentos e no ambiente, incluem efeitos como infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer, segundo o Inca. "Os efeitos adversos decorrentes da exposição crônica aos agrotóxicos podem aparecer muito tempo após a exposição, dificultando a correlação com o agente", diz documento divulgado pelo órgão.

O texto ressalta que a presença de resíduos de venenos não está apenas em alimentos in natura, mas também nos industrializados, como biscoitos, salgadinhos, pães, cereais matinais, lasanhas e pizzas. Os agrotóxicos ainda podem estar presentes, segundo o Inca, em carnes e leites. Como alternativa, o instituto apoia a produção sem o uso de venenos ou fertilizantes químicos.

O banimento dos agrotóxicos é, de acordo com o nutricionista do Inca Fábio Gomes, uma forma de evitar riscos de câncer. "Temos que chegar lá para proteger a população do campo e da cidade, assim como nosso meio ambiente e nossos recursos naturais", diz.

O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, da Associação Brasileira de Agroecologia, ressalta que a eliminação progressiva de agrotóxicos é viável e que os venenos podem ser totalmente substituídos em alguns anos, "com um pouco de investimento em pesquisa", diz.

"Não é razoável supor que a humanidade não tem condições de produzir comida sem veneno. Não faz sentido. Os venenos existem em função do interesse econômico, mas são irracionais do ponto de vista do desenvolvimento social. Não há dúvida de que, com um pouco de investimento em pesquisa, podemos limpar nossa comida. Falta vontade política", diz.

Contestação

A Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), que representa os fabricantes de venenos agrícolas, divulgou nota contestando o documento e relativizando as preocupações com a saúde. "A cada dia, em todo o mundo, cerca de 12 mil crianças com menos de 5 anos morrem de fome ou por problemas associados. Não se pode falar em saúde enquanto quase 1 bilhão de pessoas no planeta enfrentam esse flagelo", diz a nota. Os alimentos orgânicos, produzidos em "lavouras arcaicas", de acordo com o texto, "não são mais saudáveis do que os convencionais". "A Andef reitera plena confiança nos rigorosos métodos de análise e de regulamentação de defensivos agrícolas adotados no Brasil", diz o texto.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou, também por meio de nota, que o posicionamento do Inca "vai no sentido dos esforços que a Anvisa tem feito em torno do monitoramento de agrotóxicos no país e da própria reavaliação desses produtos". De acordo com o órgão, a fiscalização de resíduos de venenos em alimentos tem "apontado dados importantes para a avaliação do uso de agrotóxicos". A Anvisa informou que, desde 2008, reavalia o registro de venenos agrícolas.

"Os venenos existem em função do interesse econômico, mas são irracionais do ponto de vista do desenvolvimento social. Não há dúvida de que, com um pouco de investimento em pesquisa, podemos limpar nossa comida"

Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo da Associação Brasileira de Agroecologia

 

Fonte: Correio Braziliense