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Pesquisa aprofunda fatores de insatisfação profissional na enfermagem

- Claudia Bittencourt



Em maio, durante o mês da enfermagem, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) lançaram a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil. O estudo realizado pela pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Maria Helena Machado revelou dados preocupantes e mostra a realidade de uma profissão, que apesar de fundamental para a área de saúde, encontra-se desvalorizada.

Em entrevista ao Informe Ensp, Maria Helena comentou a abrangência do estudo, revelou o perfil da enfermagem no Brasil e citou o principal fator de insatisfação profissional, segundo os próprios entrevistados. Confira.

Informe Ensp: A pesquisa foi anunciada como o mais amplo levantamento sobre uma categoria profissional da América Latina. Fale sobre sua abrangência:

Maria Helena Machado: Perfil da Enfermagem é uma pesquisa de abrangência nacional, na qual analisamos a categoria enfermagem nos seus três segmentos: auxiliares, técnicos e enfermeiros. Portanto, traçamos um perfil não só destas três categorias, mas da equipe como um todo em âmbito nacional, regional e estadual. O estudo, além da grande abrangência, é inédito no país, pois inclui desde profissionais no começo da carreira (auxiliares e técnicos que iniciam com 18 anos; enfermeiros, com 22) até os aposentados (pessoas de até 80 anos) e aqueles que abandonaram a profissão. Analisamos todos os dados relacionados ao mundo do trabalho, formação, condições de trabalho, situação de desemprego, ou seja, não incorporamos só os profissionais na ativa, mas a corporação da enfermagem como um todo, separando os dados, inclusive, pelos segmentos de empregabilidade (público, privado, filantrópico e ensino).

Isso tudo é reforçado pela dimensão da enfermagem. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a área de saúde no Brasil compõe-se de uma força de trabalho de 3,5 milhões de profissionais. Desses, cerca 50% atuam na enfermagem. Nosso estudo responde pelo universo de 1,6 milhão de trabalhadores.

Qual é perfil da enfermagem, hoje, no Brasil?

Maria Helena: Pensando nessa abrangência, diria que algumas coisas chamam atenção para definirmos o perfil: uma delas é o quesito cor e raça. Há um contingente grande de brancos (42,1%) na profissão, mas também um conjunto bastante expressivo de pardos e pretos (53%). Além disso, surge na categoria a participação de indígenas (0,6%), o que pra nós foi um dado bem interessante. Hoje eles ocupam, em sua maioria, a posição de auxiliares e técnicos, mas trata-se de uma população que tem inserção na profissão e necessita de políticas públicas específicas, pensando na perspectiva da discriminação e da possibilidade de acesso social.

Nos chamou atenção, em relação a sexo, o movimento inverso do que ocorre nas demais profissões de saúde. É clara a feminilização e o aumento do número de mulheres trabalhando nas áreas que compõem o campo da saúde em geral. A enfermagem, por sua vez, passa por um processo inverso, com a entrada de homens na profissão. É preciso destacar que se trata de uma profissão majoritariamente feminina, composta por 84,6% de mulheres, mas que apresenta tendência à masculinização. A presença dos homens na enfermagem, no início dos anos 90, chegava a 2% ou 3%. Hoje ela é de 15%. E trata-se de um contingente que atua nos três segmentos da profissão (auxiliar, técnico e enfermeiro). Houve, de fato, uma chegada dos homens na profissão.

Em que pese o contingente expressivo de profissionais oriundos do interior (35%), eles não se mantêm na região de origem. A enfermagem apresenta forte concentração na Região Sudeste do país, com 55,6% das equipes. Imaginar que mais da metade do contingente populacional da categoria, que possui 1,6 milhão de trabalhadores, está localizada especificamente em dois estados (SP e RJ) não é o ideal para uma profissão com grande inserção no Sistema único de Saúde.

No que diz respeito às fases da vida profissional, encontramos os seguintes dados: 7,7% encontram-se no início da vida profissional (até 25 anos); 38% estão em estágio de formação profissional (26-35 anos); 29,1% vivem o que chamamos de fase de maturidade (36-50 anos); 12% situam-se em desaceleração da vida profissional (51-60 anos); e 2% estão aposentados (mais de 61 anos).

Como a senhora descreveria a formação do profissional da enfermagem no país?

Maria Helena: A natureza da instituição formadora dos auxiliares e técnicos de enfermagem é privada (72,2%), mas há um dado relevante que aponta para o aumento da escolaridade na profissão. Esse processo é natural em decorrência do aumento das escolas de enfermagem, o que acarreta em uma oferta grande de enfermeiros e um mercado de trabalho repleto de recém formados. Por outro lado, temos um contingente bastante expressivo de técnicos e auxiliares com o que chamamos de uma “super qualificação”, ou seja, possuem formação acima do exigido pela profissão. Falamos de técnicos ou auxiliares que já são enfermeiros diplomados (23,7%) ou estão realizando (ou já realizaram) a graduação (11,7%). O processo de aumento da escolaridade requer uma mudança na política da empregabilidade, pois o mercado terá um volume muito maior de profissionais qualificados e tecnicamente credenciados para uma pouca absorção de enfermeiros.

A senhora acabou de falar que há uma pouca absorção de enfermeiros já diplomados no mercado. Como se configura a enfermagem?

Maria Helena: Hoje o Brasil tem uma composição de 20% de enfermeiros e 80% de técnicos e auxiliares. O mercado formativo me mostra um crescimento grande de enfermeiros, o que pode ocasionar um desequilíbrio entre oferta e demanda.

E um dado importante nesse quesito é o desemprego: há um “desemprego aberto” na profissão. A pesquisa revelou que 10,1% dos profissionais entrevistados relataram situações de desemprego nos últimos 12 meses, enquanto 65,9% disseram ter dificuldade em encontrar emprego durante o mesmo período. O resultado nos preocupou por se tratar de uma corporação essencial para a saúde. Não há no mundo a possibilidade de ter saúde sem a presença do profissional da enfermagem.

Qual aspecto mais chama atenção na pesquisa?

Maria Helena: Encontrarmos condições de subsalários, subjornadas de trabalho – que acarretam situação de “subemprego” – chamou bastante atenção. A subjornada é entendida como a soma de horas trabalhadas pelos enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem em suas atividades profissionais que é igual ou inferior a 20 horas semanais. O outro conceito, o de subsalário, refere-se às situações em que o profissional, seja enfermeiro, técnico ou auxiliar percebe renda mensal igual ou inferior a 1.000 reais. O subemprego é a consequência desses fatores, entendendo que o profissional nessa situação trabalha sem regularidade ou durante poucas horas por semana (subjornadas), ou ainda recebe valores salariais muito aquém (subsalário) do que é devido pelas suas funções estabelecidas pelo mercado de trabalho.

Diante de tais condições, a pesquisa alerta para o fato de terem sido detectados em torno de 50 mil profissionais (3,2%) em situação de “subjornada de trabalho”, ou seja, trabalhando igual ou menos de 20 horas semanais, considerando, como dito acima, todas as suas atividades no âmbito da enfermagem. Também observamos mais de 26 mil que declaram ter jornadas semanais que somam menos de 10 horas, ou seja, 1,7% do total do contingente.

Essa condição de ‘subjornada’ encontrada na pesquisa pode ser associada à situação de atividade ‘bico’, na qual o profissional trabalha, quando há oportunidade, por hora trabalhada, seja na assistência ou em outras áreas da enfermagem, não havendo configuração de um emprego formal. Por outro lado, encontramos quase 40% de profissionais da equipe atuando mais de 41 horas semanais.

No quesito renda mensal, de todos os empregos e atividades que a equipe de enfermagem exerce, encontramos 1,8% de profissionais na equipe (em torno de 27 mil pessoas) que recebem menos de um salário-mínimo por mês. Além disso, há um elevado percentual de pessoas (16,8%) que declararam ter renda total mensal de até R$ 1.000. Dos profissionais da enfermagem, a maioria (63%) tem apenas uma atividade/trabalho. Em suma, a equipe de enfermagem trabalha muito e recebe muito pouco.

Quem são os piores pagadores na enfermagem?

Maria Helena: Os quatro grandes setores de empregabilidade da enfermagem (público, privado, filantrópico e ensino) apresentam subsalários. O privado (21,4%) e o filantrópico (21,5%) são os que mais praticam salários com valores de até R$ 1.000. Em ambos, os vencimentos de mais da metade do contingente lá empregado não passam de R$ 2 mil.

E no que se refere às condições de trabalho?

Maria Helena: Os resultados de o Perfil da Enfermagem revelam desgaste profissional em 66% dos entrevistados. Eles falaram sobre situações de estresse e problemas de saúde como dores na coluna, problemas psíquicos, desequilíbrio de pressão, colesterol elevado. Outra situação preocupante refere-se à percepção da equipe de enfermagem em relação à população usuária (seus pacientes), no qual, menos da metade (46,6%) disse receber tratamento cordial e respeitoso daqueles que são atendidos por eles. Essa foi uma queixa presente na fala da equipe de enfermagem. A maior taxa de violência encontrada no estudo foi cometida pela população. Não há proteção adequada no ambiente de trabalho contra violência, e isso tem a ver com o fato de estarem na linha de frente do atendimento, de terem contato direto com a população.

No questionário havia uma pergunta sobre os fatores mais importantes da insatisfação profissional. Quais foram?

Maria Helena: A questão salarial foi o segundo aspecto mais respondido nessa pergunta. O principal fator foi a falta de reconhecimento. A enfermagem é uma profissão extremamente religiosa, que os profissionais exercem com amor. A falta de reconhecimento os faz sofrer.

Fonte: ENSP/Fiocruz