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Com as novas tecnologias, crescem coletivos de comunicação que produzem conteúdo

- Ascom SE/UNA-SUS



Quando o pequeno Eduardo de Jesus levou um tiro de fuzil na porta de casa, em abril do ano passado, durante operação da Polícia Militar no Morro do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, o Coletivo Papo Reto chegou antes do Estado. Antes da Rede Globo. O grupo de mídia independente foi chamado pelos moradores. Eduardo usava um calção azul, estava sem camisa, havia sangue. Coube ao Papo Reto preservar a integridade do corpo e o local do crime e registrar em textos, fotos e vídeos o desespero, o protesto, a dor da comunidade, os gritos de dona Teresinha, a mãe do filho morto. Postados nas redes sociais, no site do coletivo e nos grupos de WhatsApp, esses relatos ganharam o mundo e foram utilizados como forma de pressão. Pela primeira vez em anos, no Complexo do Alemão, aconteceu a perícia de um assassinato.

O Papo Reto é apenas um entre dezenas de coletivos de comunicação independente que vêm lançando mão das ferramentas tecnológicas para produzir conteúdos informativos e disputar a narrativa com as mídias hegemônicas. Há pouco mais de dois meses, a Agência Pública — ela própria uma alternativa aos veículos tradicionais — lançou o Mapa do Jornalismo Independente, uma seleção de iniciativas que nasceram na rede, frutos de ações coletivas e não ligados a grandes grupos de mídia, políticos, organizações ou empresas. No levantamento original, constam 74 projetos. Mas o mapa é colaborativo e, a cada dia, são incluídos na plataforma outros canais sugeridos por leitores.

Ao navegar pelo Mapa, você descobre desde sites que fazem a verificação diária do discurso público (“Aos fatos”) até ativismo social (“Jornalistas Livres”); projetos que envolvem a luta pela democratização da comunicação (“Barão de Itararé”) e outros voltados para a grande reportagem (“Brio”) ou que propõem novas abordagens para temas muitas vezes negligenciados pela grande imprensa (“Marco Zero Conteúdo”); algumas propostas mais livres e anárquicas (“Revista Berro”) e muitas comprometidas com a defesa intransigente dos direitos humanos (“A Ponte”) ou do Feminismo (“Think Olga”), afora aqueles que se dedicam à produção de conteúdo sobre cultura (“Nonada”), economia (“Draft”), direito (“Justificando”), meio ambiente (“O Eco”) ou futebol (“Puntero Izquierdo”). O mapa completo pode ser acessado aqui: http://apublica.org/mapa-do-jornalismo/#_

Para o jornalista Esdras Marchezan, do “Repórter de Rua” — mais uma iniciativa mapeada pela Agência Pública —, esses formatos vêm ajudando a quebrar o monopólio da informação a que a sociedade estava acostumada. “A mídia corporativa perde espaço e entende que há outros discursos e vozes ganhando visibilidade, e tudo isso numa estratégia combativa ao modelo que ela criou e manteve até então”, diz, listando a internet e a crise de credibilidade dos veículos como os maiores responsáveis pelo boom dos independentes. “Por isso, entendo como necessário o crescimento desses canais, assim como também uma melhor regulação da mídia, de forma a oferecer oportunidades mais igualitárias às iniciativas de comunicação”, argumenta.

O Repórter de Rua, por exemplo, que nasceu na pequena Mossoró, no Rio Grande do Norte, investe nas reportagens em profundidade com a experimentação de narrativas para o webjornalismo. As pautas giram em torno de histórias silenciadas, aquelas que há muito tempo vêm perdendo espaço na grande mídia. Pode ser um especial sobre vida e morte dos homens do garimpo ou uma reportagem de fôlego a partir dos trabalhadores dos fornos que produzem cal, uma realidade no interior do estado. “Lançamos o especial na internet, e numa proposta transmídia, espalhamos o conteúdo em outras plataformas (TV, exposição fotográfica, cartazes e redes sociais) ”, diz. A ideia, segundo Esdras, é que o público possa acompanhar as histórias onde quiser. Para ele, há sempre uma grande história a ser contada e sempre alguém querendo ser ouvido. “É atrás destas pessoas que o Repórter de Rua vai”, conclui.

Do Morro do Alemão

Do Nordeste para o Sudeste. Na outra ponta do mapa, o midialivrista Raull Santiago se define como “favelado convicto do Complexo do Alemão”. Ele é um dos integrantes do coletivo carioca Papo Reto, que usa a comunicação como ferramenta de busca e reafirmação de direitos para a favela. “No passado, gritávamos pela mídia para expor nossas pautas, hoje apontamos nossos celulares, fazemos o texto e subimos para uma, duas, cinco redes sociais ao mesmo tempo”, diz, acrescentando que a mídia nunca se interessou por nada de positivo que acontece na favela. “Só cobria violência e, pior, às vezes editava nossas falas de forma terrível”, relata. “Por conta disso, aprendemos a fazer, nos tornamos multimídias e agora, por muitas vezes, são os coletivos que pautam a grande imprensa. Eles ficam fissurados em nossas redes em busca de informações”.

Num dia tranquilo, o Papo Reto pode apresentar a potência do morro, por meio de programas como #RetratoFalado — que aborda histórias de pessoas da favela, o que fazem, por que fazem — ou #OTaldoAoVivo — com link online para debates sobre temas diversos; o mais recente reuniu DJs e MCs para uma conversa franca sobre o funk. Em tempos mais difíceis, fazem o que chamam de “comunicação de resistência”, acompanhando as situações de violência enfrentadas pela comunidade a partir do monitoramento em grupos online onde os moradores trocam informação entre si, como ocorreu na tarde da morte do garoto Eduardo. Um dos maiores parceiros do coletivo é a Witness, organização especializada em promover o uso de vídeo como ferramenta de defesa e promoção dos direitos humanos. “Com eles, temos aprendido técnicas para que possamos usar nossas fotografias e vídeos como prova judicial nas diversas violências institucionais cometidas pela PM do Estado”, diz o midialivrista.

No dia em que Radis entrevistou Raull, ele estava organizando, juntamente com o Voz da Comunidade — outro veículo de comunicação do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro — uma ação no Facebook para debater a violência no território onde moram e atuam. “A favela é incrível e potente. Tem seus problemas e dias difíceis nas constantes operações policiais que se tornam verdadeiras guerras, mas isso não é nem metade do significado da favela. Por isso, usamos a comunicação independente”, acrescenta. “Quando fazemos coro ao Estado, que só nos olha através da mira do fuzil, e concordamos com a mídia que dá a notícia de que um traficante morreu, se fazendo de juiz ao julgar e condenar com a mão do Estado, estamos puxando o gatilho juntos”.

“Correspondentes locais”

Outra iniciativa que também integra o Mapa de Jornalismo Independente é a Agência Mural de Jornalismo de Periferias, que nasceu em 2010, como um blog hospedado na Folha de S. Paulo, e transformou-se, em 2015, na primeira agência de notícias, de informação e de inteligência sobre as periferias de São Paulo. A ideia do projeto, de acordo com seus criadores, sempre foi a de contar as muitas histórias invisíveis que aconteciam nesses bairros e regiões distantes do centro de interesse econômico e político da maior cidade do país. Com o compromisso de publicar uma história por dia, o objetivo era também fazer um jornalismo que refletisse a visão de quem mora nesses bairros. Assim surgiram os “correspondentes locais”, para brincar com os “correspondentes estrangeiros”, conceito corriqueiro na grande imprensa. 

Hoje, o correspondente de Guaianases, Lucas Veloso, de apenas 21 anos, está entre os finalistas de um concurso internacional promovido pela plataforma Climate Journalism, concorrendo com a reportagem “Gasto seis horas no transporte público, todo dia: o desafio da mobilidade na periferia de SP”, publicado na Agência Mural. Para Izabela Moi, jornalista e co-fundadora do projeto, a revolução promovida pelo desenvolvimento acelerado das Tecnologias da Informação (TICs) vem mudando a face das sociedades e também dos sistemas econômicos e políticos. Na opinião de Izabela, são os modelos de negócio das grandes empresas de mídia que estão se tornando obsoletos e não propriamente o jornalismo. “Eu tenho cada vez mais certeza de que precisamos de mais profissionais qualificados fazendo melhor o trabalho de separar o joio do trigo”, reflete, valorizando o mar de vozes que hoje ocupam a blogosfera. “Ele eleva a barra sobre a qual queremos navegar. Ele aumenta o nosso ‘mínimo multiplicador comum’ de informações, de diversidades. Ele acrescenta informação e talvez educação para uma sociedade”. No entanto, a jornalista pondera: “Só sobrevivem como iniciativas aquelas que têm a missão muito clara e que não se dissolvem no mar de oportunidades, de parcerias e projetos múltiplos. A voz que se ouve, acima do barulho, é sempre a voz da integridade no longo prazo”.

Quem financiará?

O estudioso e pesquisador do campo da comunicação Gustavo Barreto considera que a crise enfrentada não é apenas econômica, mas também de valores. “A imprensa hegemônica não consegue mais defender o discurso da imparcialidade, que nunca existiu, sem tropeçar nas atentas redes sociais, observadoras poderosas desse tipo de hipocrisia”, diz, acrescentando que as pessoas estão migrando para esses outros veículos em busca de informações que não passam pelo filtro do jornalismo tradicional. Apesar de alertar para problemas gerados pelo excesso de informação que circula nas redes, como a proliferação de boatos, Gustavo considera o aumento de veículos alternativos uma “vitória incontestável” da comunicação popular.

“O lado bom das redes é que, agora, os próprios autores e comunicadores falam sem filtros. O lado desafiador é que, ao mesmo tempo, projetos de comunicação de qualidade, que se pretendam efetivamente populares, custam algum dinheiro, mesmo que tenha sido dispensada a maquinaria dos séculos passados”, reconhece Gustavo para quem o financiamento da comunicação popular deveria ser uma política de Estado. Segundo ele, a questão que permanece é: Quem financiará a boa comunicação? “Ao meu ver, a única saída é por meio de políticas públicas abrangentes, que pensem a comunicação como um direito das comunidades e da população em geral”, sugere.

Como jornalista, Gustavo também exercita esses formatos alternativos — ainda bem antes da Mídia Ninja (que também está no Mapa da Pública) usar o streaming para transmissões ao vivo nos protestos de junho de 2013, o que acabou se configurando como um marco dessa outra comunicação possível. O jornalista participou do Núcleo Piratininga de Comunicação — referência em comunicação popular — e coordenou a revista Consciencia.net. Para ele, a única forma de manter viva a esperança de uma imprensa efetivamente popular e contra-hegemônica é repensar os caminhos desses projetos que estão surgindo a todo vapor. “Eles são uma formidável luz no fim do túnel no qual devemos continuar acreditando, apesar do cenário atual não ser favorável”, finaliza.

Fonte: Revista Radis, por Ana Cláudia Peres