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SUS (ainda) ameaçado

- Ascom SE/UNA-SUS



Num intervalo de menos de 48 horas, o Sistema Único de Saúde viveu o sobe e desce de uma gangorra ameaçadora. Era segunda-feira, 10 de agosto, quando o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) encaminhou ao Palácio do Planalto um documento intitulado Agenda Brasil — conjunto de 28 medidas para enfrentar a crise econômica no país. Ninguém podia imaginar que, em meio a outras propostas controversas, o pacote trouxesse uma ameaça explícita ao SUS. Estava lá, no terceiro ponto do eixo que se refere à proteção social: “Avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda”. Na prática, um rasgo na Constituição: o fim do SUS universal, como aprovado na Carta Magna de 1988.

A reação veio em peso e de modo imediato por meio das entidades de saúde e movimentos sociais, além de importantes atores políticos. Em um debate sobre “Direito à Saúde X Ofensiva Conservadora”, Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde, disse que a proposta caminhava no desencontro de eixos estruturantes do SUS e de conquistas históricas, e que “pagar pelo SUS é uma distorção ao Sistema”. José Gomes Temporão, que esteve à frente da pasta entre 2007 e 2010, deu uma entrevista contundente à Folha de S.Paulo (11/8), em que chamou a proposta de “ideia desbaratada”. “Politicamente é um desastre e conceitualmente é um equívoco: é radicalmente oposta ao que está na Constituição. Significa mais uma tentativa de colocar sobre as famílias brasileiras o ônus do financiamento da saúde”, argumentou. 

Ao Estado de São Paulo (11/8), o atual ministro da Saúde, Arthur Chioro, lembrou que a Constituição prevê que o Sistema de Saúde seja público e universal, o que impediria a proposta apresentada por Renan Calheiros. Uma enxurrada de manifestações nas redes sociais fez coro às opiniões contrárias ao copagamento do SUS. Só a campanha “SUS pago, não!”, encabeçada pela página de Radis no Facebook, teve mais de 3 mil compartilhamentos e 300 mil visualiazações apenas nas primeiras 24 horas. O resultado é que, depois das muitas críticas, inclusive de setores do próprio governo, houve um recuo por parte dos autores da proposta.

Na nova versão da Agenda Brasil apresentada na quarta-feira, 12 de agosto, em vez de 28, um conjunto de 43 propostas, e a retirada do item sobre a cobrança do SUS. Em substituição a esse, um novo artigo foi incluído: “Regulamentar o ressarcimento pelos associados de planos de saúde, dos procedimentos e atendimentos realizados pelo SUS”. Mas, cumpre-se dizer, a ameaça ainda está à espreita. Pelo que se pode ler, a cobrança pelo SUS continua no novo texto fazendo cair sobre os associados – e não sobre as operadoras – o ressarcimento do SUS.

Eterna vigilância

Para Ana Costa, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), houve de fato uma reação vigorosa que permitiu reverter o susto inicial. Da forma que estava, haveria um SUS segmentado e partido. Um SUS para aqueles que podem pagar; e um outro para os que não podem. “Mas não podemos ter ilusões. Esta proposta está sobre a mesa, dentro de alguma cartola para ser reapresentada novamente a qualquer conjuntura mais propícia”, alertou, em entrevista à Radis. “No momento contamos com amplo apoio, inclusive no interior do governo, o que necessariamente não se garantirá em tempos futuros”. Ana lembrou que o desmonte da seguridade está na pauta liberal e tem sido realizado em todo o mundo, mesmo nos países cujos sistemas de proteção social estavam estabilizados e consolidados. “Tem sido o ‘remédio’ para as crises do capitalismo que quer sempre se revigorar da exploração do trabalho, dos direitos sociais dos trabalhadores”, disse. “O conjunto de dificuldades associadas ao emperramento para que o SUS se consolide como um sistema universal e de qualidade tem a ver com o jogo de interesses, particularmente com os grupos que apostam no seu desmonte e descaracterização”.

Mesmo sem saber dizer exatamente de onde partiu essa proposta, o ex-ministro Temporão não tem dúvidas sobre a que interesses ela serve. “Aos que defendem a fragilização do SUS enquanto política pública, universal, equânime e financiada com recursos de toda a sociedade através do orçamento fiscal”. Para ele, o SUS não é uma obra concluída, mas fruto da luta de gerações de brasileiros que deve continuar sendo aperfeiçoado pelas novas gerações. “Toda política social é inconclusa, é uma obra aberta”, diz. “Portanto ‘o preço da liberdade é a eterna vigilância’ e precisamos estar atentos às antigas e novas ameaças que possam colocar em risco o que está na Constituição”. À Folha de S. Paulo, Temporão já havia dito que, ao ver a proposta, teve a impressão de que “estava delirando, voltando aos tempos da ditadura militar, com ideias desse tipo, como as de Leonel Miranda (ministro da Saúde de 1967 a 1969), que propunha a privatização de toda a saúde brasileira”. 

Manobra textual?

O alívio com a retirada da proposta de copagamento do SUS da Agenda Brasil não durou muito. O novo item incluído na pauta e divulgado dia 12/8 — “Regulamentar o ressarcimento, pelos associados dos planos de saúde, dos procedimentos e atendimentos realizados pelo SUS” — também preocupa os que defendem um sistema universal e gratuito, uma vez que revela a intenção de livrar as operadoras dos planos de saúde do ressarcimento ao SUS.

Vejamos: a Lei 9.656, de 1998, que cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), já estabelece que todo e qualquer atendimento na rede pública a pessoas que tenham cobertura por planos e seguros deve ser reembolsado ao SUS pelas operadoras de planos de saúde. “Fazer a cobrança cair sobre os associados (como diz a redação da nova proposta) seria não apenas um contrasenso como um crime contra a economia popular”, enfatizou Temporão. “O ressarcimento deve incidir evidentemente sobre as operadoras e não sobre as pessoas que pagam, e caro, por esse serviço”. Dito de outra maneira, da forma como está escrito, o cidadão que tem plano de saúde e, por algum motivo, for atendido pela rede pública, vai pagar três vezes: por meio dos impostos, da mensalidade dos planos (ou co-pagamento de plano de coletivo, quando houver) e pelo uso do SUS.

Rosa Maria Marques, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), disse à Radis que a nova redação não faz nenhum sentido. “Os planos de saúde são empresas, cujo objetivo é fazer lucro a partir da produção e venda de uma mercadoria — no caso, os cuidados com a saúde nas diversas situações em que a necessidade se apresentar, balizado pelo contrato estabelecido entre as partes”, analisou, acrescentando que o recurso ao uso da saúde pública cria a necessidade de ressarcimento do custo desse uso, dado que a formação do lucro do plano de saúde não é interrompida. 

Por outro lado, a professora ponderou que pode haver a intenção de que o ressarcimento seja feito diretamente ao usuário. “Mas isso também não faria sentido uma vez que o atendimento do SUS é gratuito para ele, que não perde o direito de ser assistido pelo SUS por ter plano ou seguro privado de saúde”, sugeriu. Para a presidente do Cebes, Ana Costa, fica claro que essa é uma demanda dos planos. “Certamente, dessa forma vaga como aparece no texto, fica pendente qual o recheio dessa empada de massa podre”, lamentou. “De todo modo, para que isso possa valer, terão que refazer a lei. Mas eles tentarão. Não tenhamos nenhuma incerteza disso”.

Outras ameaças

Apresentada como uma “agenda positiva” para o país, o conjunto de propostas da Agenda Brasil traz ainda outros temas que afetam diretamente o SUS, a Previdência e outras políticas sociais nesse momento e soam como um retrocesso de direitos (ver Saiba Mais com todas as 43 propostas). Assuntos que não são mais novidade prometem voltar à tona nos próximos dias quando começam a ir à votação em plenário, a exemplo do item que sugere “aperfeiçoar o marco jurídico e o modelo de financiamento da saúde. Avaliar a proibição de liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS”. 

Ou ainda a sugestão de “favorecer uma maior desvinculação da receita orçamentária, dando maior flexibilidade ao gasto público”, “ampliar a idade mínima para aposentadoria”, “regulamentar os trabalhadores terceirizados” e as propostas que visam flexibilizar terras indígenas, áreas naturais protegidas e o licenciamento ambiental. Em relação a estas, ONGs do movimento ambiental lançaram uma carta de repúdio em que tratam a Agenda Brasil como um “pacote de medidas que aprofunda os retrocessos em questões socioambientais, rifando os direitos territoriais indígenas e a regulação ambiental e colocando o país na contramão das respostas que exige a crise climática”.

Em relação ao SUS, Rosa Marques chamou a atenção para o fato de, no capitalismo contemporâneo, o endividamento dos Estados e a relação estabelecida entre esses e seus credores falar mais alto. “Honrar os contratos, mesmo que draconianos, torna-se prioridade número um, de modo que tudo mais fica a ele subsumido”, disse. “Introduzir o copagamento no SUS resultaria em diminuir o gasto social e dispor de mais recursos exatamente para honrar essa dívida”. Segundo a professora, a expressão “ditadura da dívida”, que muitas vezes associamos a mero discurso ideológico, é bastante concreta, principalmente quando os recursos começam a se tornar escassos em função de crise econômica nacional e internacional.

Na Câmara e no Senado, muitas vozes se levantaram contra a proposta apresentada na Agenda Brasil. O deputado federal Jorge Solla (PT-BA) foi enfático. “Se a proposta do PMDB previa que quem tivesse mais dinheiro, pagaria mais no uso do SUS, eu sugiro que aprovemos a regulamentação da taxação das grandes fortunas. Será a chance de realmente colocar os custos da melhoria do SUS na conta de quem lucra com a produção de riquezas da nossa classe trabalhadora, que é quem majoritariamente usa o SUS”. Ao lançar a campanha “Não à cobrança do SUS”, em sua página na internet, o senador Romário (PSB-RJ) afirmou: “Antes de discutirmos o pagamento de procedimentos no SUS, temos que implementar uma boa administração dos recursos públicos que financiam a saúde”.

Em carta à presidenta Dilma Roussef e à sociedade, entidades que compõem o movimento da Reforma Sanitária Brasileira afirmaram que “desmantelar o SUS, em nome da superação das crises política e econômica, poderá conduzir a outra crise sem precedentes: a da saúde”. O SUS, ainda que incompleto, diz ainda a carta, com suas limitações e contradições, gerou ações de saúde de amplo alcance, com resultados inequívocos de eficiência econômica e relevância social e sanitária. “Cobrar de alguns pelo atendimento em saúde, pela vacinação, pelo tratamento da aids, pelo transplante, pela urgência e emergência, dentre tantos exemplos, é aniquilar políticas que só deram certo porque são universais”.

 

SAIBA MAIS

Agenda Brasil

http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/12/agenda-brasil

Carta à presidenta Dilma Roussef e à sociedade – Nota pública sobre o SUS e a Agenda Brasil

http://goo.gl/3AhmTE

 

Fonte: Revista Radis, por Ana Claudia Peres